Pelo fato de ter aprendido, praticado e ter sido competidor durante os "annos mirabilis” do Judô Mundial, tenho agora, na condição de professor, a obrigação de argumentar e tecer comentários sobre o artigo de Bruno Doro, do Uol Esportes(1). Sinto certa satisfação nessa argumentação, pois em meus artigos anteriores, “O Judô Moderno"(2) e “Thiago Camilo salva o Judô Mundial"(3) em 2007, venho comentando e divulgando minha preocupação com o Judô nacional e internacional.
As novas regras da Federação Internacional de Judô (FIJ) visam justamente resgatar o Judô que estava sendo descaracterizado por influência de lutadores do Leste Europeu. Adeptos de Sambo (Rússia), Kurash (Uzbequistão) e de outras lutas tradicionais e similares passaram a praticar Judô, pois dessa maneira poderiam participar de campeonatos Internacionais e Jogos Olímpicos. O agarramento nas pernas e levantamentos para arremessar o adversário são técnicas específicas dessas modalidades, e que usadas nas lutas de Judô, permitiram certo incremento vantajoso e competitivo, resultando em inúmeras vitórias, às vezes inesperadas. Tais “técnicas” começaram a ser praticadas e aceitas, ou ignoradas, por dirigentes e árbitros que não estavam preocupados com as tradições do Judô. Muitos atletas no mundo, inclusive alguns brasileiros, também sob influência, passaram a utilizá-las, apesar do nosso Judô sempre ter sido bem próximo e semelhante ao japonês.
Hoje esses lutadores e seus seguidores, com as novas regulamentações, não sabem lutar o Judô na sua essência e assim se acham prejudicados!
Desta forma entendo que não foi nenhuma “decisão radical” da FIJ, e sim uma preocupação de dirigentes que praticaram o verdadeiro e tradicional Judô, que, em tempo, perceberam o mau caminho que estava sendo levada a modalidade e seus princípios. Desde a introdução do koka, yuko e as penalidades em 1974, não se buscava mais o Ippon, a técnica perfeita. Qualquer queda valia alguma pontuação e os atletas e técnicos começaram a adotar táticas de luta para penalizar o adversário por falta de combatividade e saídas da área de luta. A dificuldade para segurar no judogui era evidente e agarrar nas pernas se tornou mais fácil. Fundamentado em técnica e velocidade o Judô japonês, tinha dificuldade para enfrentar adversários que evitavam segurar no judogui e apenas se utilizavam da força física. Assim mesmo o Japão com certa dificuldade em fazer esse tipo de luta, vencia em algumas categorias.
É preciso entender que o Judô é único. Podemos citar o exemplo do Sumo, 23 a.C., padronizado como luta em 710 a.D.(4) se mantém até hoje fiel às suas tradições. Atualmente lutadores da Mongólia, como, Asashoryu e Hakuho (nomes japoneses), que são grandes campeões (Yokozuna) de Sumo no Japão, assim como, Kotooshu da Bulgária aprenderam e praticam o Sumo Japonês. Suas técnicas são as de Sumo e nunca se tentou introduzir ou permitir, qualquer tipo de técnica de lutas estrangeiras nessa modalidade.
Portanto não existe atleta “prejudicado” pelas novas regras, o que existe é falta de conhecimento teórico/prático dos fundamentos do Judô. Prof. Jigoro Kano na sua preocupação pedagógica, também ensinou técnicas de posicionamento do corpo (tai sabaki), técnicas de bloqueio, desvios e técnicas de defesa, fundamentadas no “Sen no Sen” e “Go no Sen”, denominações de 1888, que hoje precisam novamente ser citadas nos comentários das novas regras, uma vez que esses princípios deixaram de ser ensinados e praticados.
A disputa pela pegada (kumi kata) é fruto da falta de orientação. Praticantes e atletas, temerosos em serem dominados e derrubados dificultam o contato direto tomando posições defensivas e abaixando o quadril, não praticando mais as defesas, parte essencial do Judô. Judoca nenhum precisa praticar “novas técnicas” ou “inventá-las”, estão todas classificadas pedagogicamente, desde que o Prof. Jigoro Kano as organizou em 1900. Consequentemente não existe nenhuma “grande mudança”.
O Judô como luta foi criado através de pura técnica embasado no desequilíbrio e arremessos perfeitos, visando o aperfeiçoamento do ser humano num contexto biológico, psíquico e social. Prof. Jigoro Kano preconizava, “... e no Judô a busca pela perfeição técnica e espiritual envolve; conduta moral, disciplina, autocontrole, respeito, seriedade e sinceridade...” e,“...a competição tem validade como meio de avaliação do processo de desenvolvimento pessoal adquirido em sentido amplo, isto é, espiritual, moral e técnico..."(5).
É a essência que lutas ocidentais não possuem.
Odair Borges
Referências:
(1) Artigo disponível em arquivo JudoBrasil - 16/02/2010
(2) Artigo disponível em arquivo JudoBrasil - 03/08/2007
(3) Artigo disponível em arquivo JudoBrasil - 21/09/2007
(4) Draeger, D.; Smith, R. – Asian Fighting Arts – Kodansha. Tokyo, 1960
(5) Maekawa, M.; Hasegawa, Y. Studies on Jigoro Kano – Significance of His Ideals of Physical Education and Judo. Bulletin of the Association for Scientific Studies on Judo. Kodokan Report II. Tokyo, 1963
Odair Borges (7º Dan) é mestre em Educação Física pela Universidade de São Paulo (USP), foi o primeiro judoca brasileiro a estagiar no Japão (Universidade de Waseda) no início da década de 70, foi integrante da seleção brasileira durante muitos anos. Cabe ressaltar que sua tese de mestrado foi avaliada (e aprovada) no Japão posto que, na época, não havia uma banca examinadora brasileira preparada para analisar um trabalho específico de Judô.
Fonte: JUDOBRASIL